Nesse 8 de março eu não produzi conteúdo. A princípio me senti um pouco mal por isso, já que temos apenas um dia do ano para que as pessoas lembrem que somos gente e ouçam o que temos a dizer, mas a verdade é que não fiz por falta de vontade mesmo. Em parte porque, como a Clara Averbuck desabafou em outra rede, estou cansada de passar tantos anos pedindo o básico e dando murro em ponta de faca, sem sair do lugar. Para além disso, estou cansada de ser escravizada por plataformas que ditam o que posso e não posso falar, que me castigam com baixo engajamento quando digo a verdade e servem ódio gratuito e sem filtro toda vez que toco em alguma questão um pouco mais “polêmica”.
Já há um tempo tenho me questionado quanto vale o esforço de trazer reflexões elaboradas, que me custam horas de trabalho, quando quaisquer 15 segundos de dancinhas e frases prontas têm mais visibilidade do que eu poderia sonhar em ter. Enfim, não aguento mais a sensação de nadar na areia. Então esse ano fiz as pazes com a ideia de que não ia ter conteúdo e escolhi me preocupar apenas com as atividades do calendário de março dos movimentos feministas da cidade.
Aqui em Juiz de Fora, MG, eu toco um projeto de educação feminista com uma grande amiga e surgiu a oportunidade de conduzirmos uma roda de conversa em um bar, antes de um show que rolaria pra celebrar o 8m. Confesso que não estava muito confiante a respeito do quórum, pois era uma roda de conversa feminista, numa noite de sábado, com lua crescente e um calor de matar. No começo, acreditei que meu receio fazia sentido.
A conversa estava marcada para as 21 e, por volta das 21:20, começamos de forma muito natural, com a participação de umas cinco pessoas. Não fizemos introdução formal como sempre fazemos, apenas jogamos pra roda um assunto já iniciado antes, sobre relacionamento aberto e monogamia. Dali pra frente o papo foi rendendo e uma coisa muito legal aconteceu: mais pessoas chegaram, ocuparam as cadeiras e se acomodaram de pé em volta da roda, ouvindo atentamente ou contribuindo com a conversa. Não contei, mas acredito que ao final éramos um pouco mais de vinte.
A partir da não monogamia falamos sobre aborto, relacionamento abusivo, violência sexual, Maria da Penha, a atividade dos movimentos sociais em outros países e mais um tantão de assuntos que iam mudando de um pro outro, sem percebermos o passar da hora. Saí de lá sentindo uma satisfação enorme, maior que a de milhares de curtidas em qualquer post.
Foi um 8 de março feliz, com sensação de propósito e que recobrou o que eu amava quando comecei a frequentar grupos feministas: as conversas cara a cara, ouvir e compartilhar experiências e opiniões com outras pessoas, olhando nos olhos, observando a linguagem corporal de cada uma. E esse sentimento diz muito sobre os caminhos que tento seguir na minha vida pessoal, profissional e de militância.
A escrita, a Transversais, e o perfil de criminologia no instagram (em outros tempos), são trabalhos que não me remuneram, mas me proporcionam um prazer imenso. São a peça que eu encaixaria naquela frase clichê do “trabalhe com o que você goste e…” (há várias formas de completar aqui, então vou deixar em aberto). Meu ponto é que, se pudesse escolher trabalhar com o que gosto, é isso que faria. Mas pra fazer esse trabalho tendo casa, roupa e comida, eu preciso trabalhar mais. Eu preciso de um segundo trabalho que me remunera e gasta boa parte da minha energia, que não me realiza, não me satisfaz, mas paga minhas contas. É aí, querida, que precisamos fazer escolhas.
Porque se eu gasto três, quatro horas, fazendo um post que vai ser visto por dez pessoas no Instagram, eu perco tempo de pesquisa pra coluna do mês, eu preciso atrasar mais uns dias as tarefas da Transversais, eu acabo não conseguindo escrever uma newsletter por semana. Priorizar é vital pra manter o balé dos pratinhos girando entre as mãos e saber reconhecer qual deixar cair é a única forma de manter a carreira de malabarista ativa.
Por isso, há anos, eu sigo cada vez mais convicta de que não é pulverizando pensamentos no ar que conseguirei ser agente de mudança nesse mundo que às vezes parece escrito em pedra. É preciso ter propósito, foco e estratégia, reconhecer minhas limitações e trabalhar com aquilo que eu posso de fato fazer e que não vai me entregar em troca uma sensação de vazio, que não há novo shot de dopamina que preencha.
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Mesmo nas redes, o 8 de março desse ano me pareceu diferente. Senti uma enfraquecida no volume de postagens e mensagens de whatsapp, até daquelas que resumem o Dia Internacional da Luta Pelos Direitos das Mulheres em elogios, rosas e bombons. No lugar onde trabalho, por exemplo, em vez de nos darem chocolates, colocaram pra vender (risos) e eu comprei, porque chocolate é o consolo adequado pra decepção de viver os dias atuais. Mas, voltando ao mundo virtual, acredito que a mudança de governo nos Estados Unidos e as declarações recentes dos donos das redes fizeram cair o véu da hipocrisia que jogava uma luz cor-de-rosa nas intenções de quem se aproveitava do feminismo de mercado pra vender. Hoje não precisam mais dele, decretaram o fim da farsa e muita gente acatou aliviada.
Hoje nos encontramos aqui, sem ilusão e sem motivação pra acreditar que viralizar é o novo revolucionar. Nessa encruzilhada, precisamos escolher novos caminhos, ou talvez voltar os olhos pros antigos e ver o que deixamos ao passar por lá. O que posso te dizer é o que aparece na minha visão: o famigerado “trabalho de base”, lembra dele?
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Volto à minha experiência com vinte pessoas no 8 de março pra dizer que naquela roda de uma hora eu sinto que alcancei mais corações que fazendo figuração em quilômetros de feed, gritando por atenção. Repito o que disse para todes ao encerrar a conversa de bar: quer saber do que as mulheres precisam? quer falar sobre o que precisamos pra alguém? fale com quem está perto de você. Na fila do banco, na padaria, no show da banda de punk rock. Ouça também, ouça muito. A cantora, a militante, a sua avó, a sua tia, a sua funcionária.
Porque violência sexual, direitos reprodutivos, preconceito racial e luta de classes não são apenas pautas e conceitos pra engolir, regurgitar e cuspir de volta. São coisas que acontecem e permeiam a vida da gente, que pautam como nossa sociedade é organizada e se a vida de cada uma vai ser melhor ou pior. São fatos concretos, que acontecem e afetam a Dona Maria (não hipotética) e o Seu João, ainda que eles não saibam o que significa “gaslighting” e “mansplaining”. “Identitarismos” são formas de nos vermos e sermos vistas no mundo e, para que não sejam entendidos como rótulo e segregação, é indispensável o uso da lente da interseccionalidade. Porque “violência contra a mulher” é um termo genérico, que não traduz uma prática uniforme. É importante saber que mulheres negras sofrem mais violência obstétrica, mulheres trans são as mais assassinadas, que há pessoas com útero precisam travar uma guerra diária contra a invisibilização. A nossa luta é a mesma, é uma luta por direitos e contra opressões, mas pra cada uma é diferente, entende?
A melhor forma de compreender isso é estudar sim, estudar muito. Escrever textos, fazer posts (se você gosta e tem disposição pra isso), iniciar diálogos onde e quando for possível. Mas, acima de tudo, precisamos cair na real. Literalmente mesmo. Sacudir o ranço dessa vida cada vez mais individualizada, centrada em ambientes e inteligências artificiais, e olhar pra fora, pras outras. Com o seu olhar, não o do algoritmo. Reavivar a sensibilidade do toque, da fala, da escuta e da presença. Em comunidade, não isolada na própria bolha. Renovar os afetos, a compaixão e a emoção que sai da mente e se traduz no corpo, num sorriso de satisfação, num arrepio de contentamento, num balançar de cabeça que comunica empatia e entendimento.
Por hoje é só. E que, contra todas as probabilidades, o próximo ano seja melhor. :)
Menina, que coisa boa é papo de feminista em mesa de bar.