Desde que escrevi aquele texto sobre A Substância, o assunto “padrões de beleza” parece que ficou comigo e não consigo me livrar desses pensamentos. Logo, penso que se eu escrever mais, se conseguir confessar tudo de sórdido que tem passado pela minha cabeça ultimamente, talvez consiga sair desse loop e seguir a vida para outros assuntos e outras ideias. Por isso estou aqui hoje.
Como comentei no notes outro dia, eu tento ser o mais body positive que consigo ser. Admiro mulheres de corpos diversos que desfilam pelas redes, me esforço muito para usar o que eu quiser e não ter vergonha do meu corpo, para não me comparar com o tanto de mulheres-pirulito aparecendo nos meus feeds ultimamente, mas agora tem sido mais difícil que antes.
Meu processo de aprisionamento e libertação dos padrões de beleza é longo e doloroso, como eu acredito que seja para todas as mulheres, e nem um pouco linear, como eu já cheguei a pensar que seria. Tenho um longo histórico de sofrimento psicológico e físico na tentativa de chegar perto do que é considerado belo pela nossa sociedade, percorri um caminho árduo para entender que eu não precisava corresponder a essas expectativas e ao longo dos anos, acredite, eu fiz muito progesso em relação a isso, MAS… quando penso em como é uma mulher bonita,as primeiras imagens que surgem na minha mente não mudaram tanto.
Na dúvida se posso realmente me culpar por isso, andei pedindo a algumas IA’s que me mostrassem o que é uma mulher bonita e, veja só, podemos ter desconstruído muita coisa e quebrado muitos tabus, mas essa mulher, ainda que apareça com cabelos, cores de pele e etnias mais diversas que antes, é invariavelmente magra.
Além da magreza, a pele excessivamente uniforme também chama a atenção, preciso dizer. Me faz lembrar dos filtros de instagram, que em geral fazem isso, uniformizam a pele, mas não só, boa parte também afina os rostos. O fato de que estamos presenciando em tempo real o desaparecimento acelerado dos corpos de tantas famosas não ajuda.A popularização de certas medicações poderosas na perda de peso é a cereja do bolo que essas mulheres já não comem mais.
No meio disso tudo vejo eu, uma mulher comum, cansada demais para tentar ficar chapada de endorfina e engolindo meus sentimentos com calda de chocolate por cima. Vivendo com o maior peso que já tive na vida, mais desconfortável que nunca na minha própria pele. Coisas que são muito difíceis admitir, porque apesar de claramente termos voltado às antigas eras do culto à magreza, é preciso também ser positiva e amar seu corpo, acima de qualquer circunstância.

Eu sei que estou doente, o desconforto não é só psicológico, mas a cura dessa doença também não é uma trajetória linear, apesar dos anúncios do Instagram tentarem o tempo todo me convencer de que é. Porque ao mesmo tempo em que meu corpo parece estar tomando os maiores golpes da luta que é viver na atualidade, eu nunca me senti tão lúcida. Nunca estive tão consciente da minha própria dualidade e inconstância, nunca assumi tanto para mim quanto agora sobre a bagunça interna e externa que governa a minha vida.
“Sou uma feiticeira do caos” eu pensei quando descobri que Wanda Maximoff era a Feiticeira Escarlate e que teria que passar por um longo período de treinamento até que dominasse sua magia. Mas eu não sou nenhuma Wanda… na minha vida nunca passou aquele clipe com uma música inspiradora no fundo e a mocinha atravessando o tempo num trabalho dedicado e intenso que invariavelmente a levará à conquista do objetivo. Aqui não, violão! Meus caos é real, minha exaustão também.

São 40 anos lidando com um sentimento de inadequação que cresce e diminui, mas nunca vai embora. São idas e vindas entre estar saudável e doente, satisfeita e inquieta, no controle e desvairada. E um buraco dentro de mim que cresce e diminui como as ondas que vão e vêm no mar, às vezes mansas num leve balanço, às vezes imensas devorando tudo à sua frente. Eu alimento esse buraco com comida, com autodepreciação, com anestesiamento. A falta só diminui quando me sinto equilibrada, boiando em ondas calmas, mas minha vida não tem sido assim ultimamente.
Então a fome emocional voltou, o ritual de aguardar ansiosamente o momento em que estou sozinha para pedir qualquer comida superporcionada, sentar na frente da TV e engolir com pressa, sem parar até que o estômago comece a doer, faz parte da minha vida novamente. A ressaca moral de subir na balança, me olhar no espelho com desgosto e me definir com palavras cruéis que prefiro não repetir aqui me acompanha no dia seguinte e em muitos outros depois. Até que a compulsão reaparece e o ciclo se reinicia. É assim que tenho vivido.

Doeu escrever, dói ler e é constante a dor de pensar e viver assim, mas deixo aqui minha confissão e minha súplica para que, com esse gesto, o peso metafórico de estar na minha pele diminua.
Peço desculpas se incomodei com o excesso de imagens artificialmente geradas, a ideia era tentar traduzir pelo menos um décimo do que eu sinto e penso quando imagino o que é ser bonita e olho para o que eu sou.
Nosso corpo não é nosso
O controle dos nossos corpos não opera somente no que diz respeito à forma que ele deve ter, mas em um nível bem mais profundo, somos controladas para fazer e produzir o que uma sociedade capitalista e heteropatriarcal espera de nós. Por isso, projetos que tensionam aumentar esse controle têm avançado em diversas esferas da sociedade. No Brasil, foi aprovada na CCJ a PEC 164/12, que muda o art. 5o para determinar o início da vida desde a concepção e, com isso, proibir todas as formas de aborto no Brasil. Escrevi sobre o tema para o Catarinas esse mês:
A PEC 164/12 e a criminalização do aborto em todas as circunstâncias
Você também pode me ler e falar comigo por aqui:
E por hoje é só :)
Obrigada por ter compartilhado o teu relato. As palavras são bonitas e intensas, e a mensagem não podia ser mais relevante (tínhamos tudo para ter feito uma evolução real como sociedade neste quesito!). Mas saber que, de trás do espaço entre as letras, tem uma compulsão que se mostra... uma que guiou minha vida por tanto tempo também, e não somos as únicas, tenho a certeza infeliz disso... me faz querer escrever este comentário, assim, sem muitos pontos finais porque essa batalha é sempre meio constante mesmo. Lívia, espero que o tsunami ruim passe e que reencontres novas ferramentas pra lidar com ela! ♡
Não consigo imaginar uma mulher, mesmo magra e com um belo par de seios, que leia seu texto e não consiga se identificar com pelo menos uma parte dele. Todas sofremos em algum nível. E suplicar por essa aceitação sem nenhuma mudança concreta nesse imaginário da beleza é só aumentar a nossa parcela de culpa. É uma triste realidade, com a aflição de que não parece ter prazo de validade. Acho que o que me acontece com constância é mudar um pouco o foco da atenção. Ainda que não resolva, ameniza. E fica aqui um beijo e um abraço carinhoso ❤️