Nessa edição falo de A substância, a partir das impressões que tive e das reflexões que a Rafa Venturim apontou em sua análise sobre o filme (pode conter spoilers).
Eu não sou fã de body horror, menos ainda de gore, mas nem essa categorização me impediu de querer muito assistir A substância. Ainda que eu não gostasse do filme em si, já havia sido capturada pelo enredo de uma mulher que está disposta ao absurdo para alcançar a tão aclamada “melhor versão” de si mesma. Eu precisava saber como essa história ia se desenrolar.
Pois bem, eu não só gostei do filme como pensei muitos pensamentos a respeito, o que também já era esperado. Esse assunto mexe muito comigo, dispara um bom tanto de gatilhos e cutucar essas feridas é meu esporte favorito. Não faço somente pelo prazer que a dor de arrancar a casca e expor a carne viva provoca, há uma imensa vontade de saber como vão as coisas ali por baixo, o quão machucada está essa pele e como é o processo de cura acobertado pela camada mais grossa.
Logo depois que vi, a Rafa publicou uma edição em sua news sobre a porrada que é A Substância. Eu não poderia concordar mais. É um filme que provoca sensações físicas, que mexe com a cabeça e com o corpo, causando um mal estar que, por aqui, durou vários dias.
A news da Rafa traz o ponto de vista de uma mulher de 30 anos e, dentre outras coisas, fala sobre essa preocupação com o envelhecimento que acaba afetando a todas nós, especialmente depois de certa idade. É como se completar cada década fosse ficando cada vez mais pesado e assustador. Desde que me entendo por gente, minha mãe parecia ter mais medo de fazer 40 anos do que de continuar vivendo o relacionamento abusivo e violento que moldava nossa família. Não é para menos, são muitos fantasmas que nos assombram: estamos perdendo tão desejado colágeno, nosso sistema reprodutor já tá de saco cheio dessa função toda e em vias de suspender as atividades, emagrecer é cada vez mais difícil, as costas doem, as articulações resmungam, a ressaca dura três dias… enfim, é complicado. É realmente muito difícil pensar que sua melhor versão está mais a frente e não lá atrás, onde nem a maior força de vontade do mundo vai conseguir te levar.
Rafa tem 30 anos, eu tenho 40, Elizabeth tinha 50. Degraus de uma escada que a gente quer pensar que tá subindo, mas que por estar construída em um mundo de valores tão invertidos, parece sempre apontar para baixo. Não basta envelhecer com saúde, é preciso ser bonita dentro de um padrão que te exige não ter um poro na pele e emagrecer o corpo até o quase desaparecimento, ao mesmo tempo que infla as bochechas e os lábios até alcançar a aparência de um balão de cores vibrantes, preso por um fio. Leve e frágil, mas em evidência. O cardápio de cirurgias, medicamentos, procedimentos, dietas detox e outras maneiras de tentar lutar contra a natureza para alcançar esses critérios é extenso e o preço não costuma ser barato.

Esse é um ponto que me intrigou bastante. Assim como não mostram de que maneira Elizabeth aprendeu tão rapidamente o processo complicado de utilização da substância, não há qualquer menção no filme sobre o custo financeiro dessa aquisição. Ela faz contato pelo telefone, diz que quer fazer uma encomenda e recebe as instruções pelo correio, mas pulam a parte em que certamente foi fornecido um número de cartão de crédito com o limite bem alto ou algo similar, pois podem ter certeza, sua melhor versão nunca sai de graça. A falta de cuidado com esses meros detalhes, como aquela avaliação tosca da espinha que atesta Elizabeth como uma boa candidata para a substância expõe o descuido na propagação dessas “fórmulas mágicas” de beleza, que colocam mulheres a mercê de processos dolorosos e efeitos colaterais muitas vezes desconhecidos, em troca da promessa de que a solução da vida se resume a usar o produto X para conseguir se enquadrar no ideal Y e, somente assim, finalmente ser aceita, amada e feliz.
A substância é um filme colorido, com estética viva e alegre e uma fotografia que chama atenção pela beleza impactante. Isso faz com que, por alguns momentos, esqueçamos que é um filme de terror (meu namorado achou que parece o filme da Barbie). Essa mesma estética é o que faz com que cenas grotescas como a do produtor comendo camarão e da coxa de frango saindo pelo umbigo de Sue tenham um destaque ainda maior. Como disse, eu não gosto de gore, mas sinto que o bizarro da submissão acrítica a padrões estéticos e da nossa disposição para fazer qualquer coisa que nos prometa alcançar esses padrões fica ainda mais evidente num filme com cenários tão bonitos e closes tão estratégicos.
O efeito Sue
Além da news da Rafa, eu vi outras análises, entrevistas e vídeos no tiktok falando sobre o filme. Li também os comentários desses vídeos e o que foi possível perceber é que muitas mulheres e meninas estão obcecadas pela Sue. Ainda que ela desempenhe um papel de vilã e destrua a sua matriz na esperança de sugar toda aquela vida para si, ainda que a consequência para os seus atos seja se transformar literalmente em um monstro, Sue é admirada pelo seu físico “perfeito”, pele lisinha e looks radiantes. Muitas pessoas também estão comentando sobre como Demi Moore segue belíssima, mesmo com mais de 60 anos.
Pensando nisso, não posso deixar de me perguntar até que ponto um filme como esse ensina? Ou melhor, até que ponto estamos dispostas a entender o que o filme realmente quer dizer? Mesmo uma obra tão cheia de obviedades, que é declaradamente crítica aos estereótipos de beleza e juventude, faz muitas mulheres desejarem parecer com a melhor versão da protagonista e seguirem na busca implacável por essa pessoa que nunca existirá, nem mesmo para a atriz que interpretou o papel pois, pasmem, a construção da personagem foi realizada com a ajuda de próteses e computação gráfica.
Há um misticismo na casa dos vinte que escapou às minhas mãos como areia fina. Já não tenho mais a passabilidade, não sou objeto de desejo como outrora experimentei ser, não gero imediatamente um tesão masculino que muito é baseado na minha ingenuidade ou ignorância, na minha incapacidade ou incompreensão sobre limites, dada a habilidade deles, desde sempre, de me manipular, convencer ou fazer comigo o que bem entendem; não sou mais uma menina.
Aos 30, 40 anos não somos mais meninas, como a Rafa bem enfatizou, somos mulheres. Sabemos o suficiente para deixar a ingenuidade de lado e termos mais domínio sobre nós mesmas, não somos tão vulneráveis como garotas de 20 anos que acabaram de sair da adolescência. Mas a contrapartida é que, conforme vamos ganhando essa autonomia, vamos deixando de ser desejadas pelos homens (e se você é uma mulher hetero ou bi, é bem provável que doa saber disso).
Com o passar do tempo, especialmente da última década, em que naveguei dos 30 para os 40 anos, eu consegui me libertar de muitas amarras que aprisionavam meu jeito de ser e de viver. Muitos padrões da indústria da beleza foram expostos e questionados nesse período, vemos mais pessoas advogando pela liberdade de se sentir bem no próprio corpo, seja ele como for, a maquiagem tão indispensável nos tempos da avó da Rafa já pode ser entendida como opcional e, bem lentamente, fomos cavando espaço para existir no mundo da forma que quisermos e nos sentirmos um pouquinho mais livres.Mas um fenômeno como esse não acontece sem que um backlash violento surja para morder as nossas costas.
Ainda que vivamos tempos de “desconstrução”, ainda há um ideal a ser conquistado e a juventude (ou aparência de) segue como parâmetro imutável desse ideal. Percebo a evidência desse retrocesso com o retorno da estética anos 90/00 e a valorização da magreza extrema associada a novos medicamentos; a febre dos produtos de skincare que está atingindo até meninas que sequer chegaram na adolescência; a glamourização das “esposas-troféu” e “sugar babies”, que voltam sua vida à função de agradar homens (pela aparência e comportamento); enfim, esses são apenas alguns exemplos.
Hoje, aos 40 anos, eu não me sinto uma pessoa bonita, mas é também aos 40 anos que me questiono se realmente preciso ser bonita quando há tão mais para ser. Porque a pessoa que não tem uma aparência que corresponde ao ideal imposto é a mesma que finalmente se sente madura e independente o suficiente para querer um monte de coisas da vida que nada tem a ver com beleza.
Toda vez que você se agride, se deforma, se contorce, se diminui, se violenta, se compara; toda vez que você é brutal consigo mesma, que sente inveja da própria jovialidade de outrora, que tem certeza que seu valor está atrelado à forma física e à maneira como você se apresenta; toda vez que se lembra que sua maior crítica é a própria voz que você carrega e autoriza que grite consigo mesma, reiteradas vezes num mesmo dia, lembre-se: vocês são uma só.
Encerro esse texto com a brilhante reflexão da Rafa e acrescento o seguinte: pode ser que sua melhor versão nunca chegue e talvez seja para ser assim mesmo. Completar décadas significa que estamos vivas e com saúde o suficiente para continuar envelhecendo, quer dizer que ainda estamos aqui, sobrevivemos e vivemos para seguir aprendendo a existir de uma maneira que não nos diminua, não nos machuque e não nos violente. Talvez seja essa a melhor versão que possamos alcançar, talvez cuidar de si seja isso.
Você também pode me ler e falar comigo por aqui:
E por hoje é só :)
Ainda não assisti o filme e também não sei se quero (acho que vou me sentir mal pelo que li sobre algumas cenas). Pois bem, interessante a crítica que você faz sobre a ausência de abordar a questão financeira. Observo algumas colegas de trabalho que gastam horrores com botox e outros procedimentos, se endividando até, pois são valores altissimos.
Gostaria de realizar alguns deles, mas para mim é um montante que foge às minhas possibilidades e prioridades.
Amei o texto.
Um beijo.
Amiga, que texto bacana. Impressionante como a gente conversa nas reflexões sobre ele. E, ainda assim, eu nem tinha pensado ou lido sobre como o filme pode, paradoxalmente, servir pra reforçar esses padrões que ele parece, a priori, criticar tão profundamente. Acho que vale mesmo se perguntar do que serve a beleza, quando somos e devemos ser tão mais do que só bonitas.