Essas são as minhas impressões sobre o documentário Pra Sempre Paquitas e pode conter spoilers.
Esses dias assisti ao documentário das paquitas que estreou recentemente na Globoplay. Assim como assisti ao da Xuxa, da Angélica e provavelmente assistirei ao da Eliana (quando tiver). Essas meninas e mulheres foram minha maior referência na infância e adolescência, a base do que significava ser bonita e bem sucedida nos anos 90. Eu não tinha absolutamente nada a ver com elas, mas queria muito ter.
Ver bastidores da história que eu assisti pela TV compartilhados por elas é algo que eu não tinha como perder. Ouso dizer que precisava disso pra ajudar no processo de cura da Livinha que aos 11 anos era chamada de “Olívia Palito” pelos coleguinhas, ao mesmo tempo em que acreditava que precisava fazer dieta pra barriga não dobrar por cima do biquíni. Elas eram meninas de 11, 12 anos que eram suspensas quando estavam acima do peso, que precisavam sofrer privações e trabalhar duro pra se moldar a uma imagem idealizada por adultos do que seria uma Paquita, mas a gente não sabia disso. Do lado de cá da telinha o que eu via eram meninas perfeitas e felizes como eu deveria ser, mas no fundo sabia que nunca seria.
Eu fui uma daquelas crianças “criadas pela TV”. Minha mãe trabalhava o dia todo e minha rotina girava em torno da programação da Globo. Sentava todas as manhãs no chão da sala pra assistir à chegada da bandeja voluptuosa do café da manhã da Xuxa com frutas variadas, sucos e frios, vê-la comer uma uva ou tomar uma água de coco e dispensar todo o resto. Tomava café com pão enquanto sonhava estar ali e ser escolhida pra provar um pedacinho de qualquer coisa, pra fazer parte de um pedacinho de qualquer coisa.
Não era só as comidas chiques que eu queria, não era só estar ali. Eu queria pertencer. Ser bonita como uma paquita e ter as portas abertas pro mundo mágico da aceitação, do reconhecimento, da visibilidade. Xuxa e Paquitas eram como Barbies brasileiras: loiras e magras, com direito a bonecas personalizadas e roupinhas sob medida. Nós passávamos os dias brincando de ser essas bonecas e na TV elas se materializavam vivas, dançantes, teoricamente possíveis.
Eu sonhava em ser paquita porque Xuxa não dava nem pra brincar de ser. Uma prima sempre era a Xuxa porque era mais velha e tinha o olho azul, a outra era a substituta porque tinha o cabelo loiro. Eu só tinha mesmo a vontade de ter alguém pra brincar e aceitava a posição em que me colocassem. Perdi as contas de quantas vezes botei pra tocar os LP`s da Xuxa e dublei as músicas, imitei as coreografias, as caras e bocas, a personalidade. Perdi as contas de quantas vezes aluguei Sonho de Verão na locadora e do quanto me doía ver paquitas loiras, bronzeadas e de biquíni, cantando, namorando, se divertindo, vivendo a vida que eu queria pra mim. Ao mesmo tempo, sonhar em ser paquita era combustível pra imaginação, pra pensar numa vidar cor de rosa, pequenos paraísos e mordidas na maçã, quando a vida real era cinza, solitária e, muitas vezes, infernal.
Assistir ao documentário foi uma forma de fazer a Lívia adulta entender que a vida das paquitas tinha muito glamour fantástico, mas tinha também uma dose pesada de realidade que fez com que eu me identificasse mais com elas agora do que conseguiria na época. Porque sim, elas estavam vivendo o sonho de toda menina, mas o preço cobrado pra se manter nesse sonho era alto, cruel. E de certa forma eu hoje posso dizer que tive algumas vantagens em relação a elas, porque mesmo precisando amadurecer cedo demais pra algumas coisas, mesmo vivendo uma infância marcada por dificuldades financeiras, alcoolismo e outros problemas familiares, eu tive uma infância. É verdade que aos 10 anos eu já sofria pressão estética e sentia que precisava me encaixar, mas não era ameaçada pra me enquadrar a esses padrões. Era um desejo forte, mas não era um dever. Eu podia não saber disso na época, mas a vida como eu conhecia e mesmo a realização dos meus sonhos não dependia diretamente disso, no caso delas sim.
Também achei importante discutirem abertamente sobre o “padrão paquita”, que pra além do corpo e da cor do cabelo (coisas que até poderiam ser modificadas), tinha como critério a cor da pele branca. Se eu sonhava em ser paquita sabendo que não poderia ser, meninas negras não tinham o direito nem de sonhar, porque o racismo “velado” da época estava presente nas seleções e no padrão de beleza mais que dominante. Há um trecho do documentário em Berry diz que as paquitas podiam sim ser morenas e negras, mas não havia procura. Você jura né, querido? Hoje sabemos que havia procura sim, ainda que pouca, e é de se entender porque não eram muitas meninas que tentavam, já que todo mundo sabia que não tinham a menor chance de serem aprovadas. Essa era a verdade não dita, a “baixa procura” mera consequência. Afinal, quantos familiares iam querer que sua criança passasse por isso?
O tempo passou, eu cresci agora sou mulher (e se formos falar da Sandy renderia outra edição como essa), mas o desejo e a frustração de querer ser paquita ficaram comigo. As horas gastas na frente da TV almejando nascer de novo pra ser pelo menos um pouquinho parecida com essas meninas e com todas as outras capas de revista, modelos, atrizes e divas pop que vieram depois deixaram marcas que não sei se um dia vão embora. A comparação, a rivalidade entre primas e amigas pra ver quem tinha mais semelhança, a sexualização tão precoce de se preocupar com a forma do corpo desde muito cedo pra se sentir desejável por adultos e quem sabe ficar famosa são questões que custam mais que anos de terapia pra gente desconstruir, porque fizeram e ainda fazem parte da nossa estrutura. Ontem eram as paquitas, hoje são as “influencers”, os filtros de instagram, a hamonização facial, o ozempic… porque se o padrão de beleza não for inalcançável, como é que o capitalismo vai vender produtos?
Então não, a culpa não é só da Marlene. É evidente que ela foi implacável e vil com a Xuxa e com as meninas, mas seria ingenuidade nossa pensar que foi uma pessoa que criou esse padrão e mais ingenuidade ainda achar que isso terminou nela ou no fim das paquitas. A beleza é um mercado e a mercadoria somos nós. Marlene Mattos não inventou isso, apenas encontrou uma forma de criar fama e dinheiro a partir disso e tá bem longe de ser a única.
É triste pensar que sofrer essa pressão em maior ou menor grau faz parte da experiência coletiva de ser mulher em uma sociedade que é machista e nos quer submissas a regras rígidas de aparência e de comportamento, que limitam nossa vida assim como limita a quantidade de comida que podemos colocar em nosso prato. Mas tomar consciência de que nossos ídolos são de barro e que por trás das imagens sempre alegres e sorridentes há pessoas reais que decidiram expor as entranhas malcheirosas dessa estrutura dá um pouco mais de confiança pra gente quebrar as lentes da ilusão e enxergar o mundo em sua plenitude. Duro e cheio de horrores, fato, mas diverso e com espaço pra um novo desejo: o de poder ser quem a gente realmente é.
Hoje, se fosse pra escolher uma inspiração daquela época, escolheria essa aqui:
Miscelânea
Tô viciada num joguinho que comprei recentemente chamado News Tower. Nele você é herdeiro de um jornal na Nova York os anos 30 e precisa contratar profissionais, escolher as manchetes e completar quests pra expandir o jornal e o prédio onde ele funciona. É um joguinho de gerenciamento em que você escolhe como a história vai ser contada enquanto vende seu jornal. Não joguei muitas horas, mas tô adorando, então fica a dica.
Publiquei dois artigos no Catarinas desde a última edição, sobre a Lei Maria da Penha e o Caso Dominique Pellicot. Vale a leitura:
Agosto Lilás chega ao fim, mas violência contra as mulheres persiste
Caso Dominique Pelicot e a história da criminalização do estupro
Você também pode me ler e falar comigo por aqui:
Por hoje é só, pessoal. Até mais :)
É mais uma faceta do racismo colocar no colo de Marlene todo o mal e trauma causado numa geração. Marlene, uma mulher negra.
Me incomoda demais Xuxa e todo mundo ficar fazendo malabarismo para justificar o racismo praticado na época. Seria muito mais digno assumir e dizer simplesmente que sente muito, né?
acho que tudo que vc escreveu me cabe.
só acho ruim no documentário isolarem a marlene como fonte do problema.
os anos 90 foram implacáveis. a Angélica era tida como "fofa".
as mães daquelas meninas estavam onde? várias disseram que não contavam nada. ah, por favor, né? a mãe de uma menina de 11 ou 12 anos não está vendo ela passar 1 semana tomando água de coco? elas quiseram proteger as mães e ok, mas a real é que a mães estavam tão imersas no padrão quanto a Marlene (sem falar da dependência financeira). tem uma hora que estão falando de uma seleção de paquitas e a marlene chega pra mãe de uma menina e pergunta se a menina pode emagrecer e a mãe garante que sim (segundo a menina). a menina devia ter uns 10 anos...
eu lembro que quando eu tinha 11 anos, uma amiga minha fazia mini-dietas, de ficar semanas sem pão, semanas sem macarrão. e ela era... magra.
acho que faltou o doc explorar isso. o caso da tatiana maranhão era perfeito. não tem, salvo a imagem dela no xou de despedida, qdo ela já não era paquita, uma unidade de imagem dela gorda. qdo ela se despediu do programa, ela cantou com uma roupa de barriga de fora! no filme sonho de verão, ela aparece o tempo todo magra, enquanto letícia spiller faz o papel de uma menina mais cheinha, inclusive. por mais que marlene fosse todo poderosa, sozinha ela não estava nessa "maluquice".
e que fiasco a xuxa, né, menina? perdi as contas de quantas vezes ela falou "não pensei nelas, não pensei nas meninas". nem no caso do incêndio? misericórdia.
eu gostei de ver o doc, o que não significa que gostei do doc. claramente Ana Paula tentando se redimir de ter dedurado as colegas, o papo constrangedor da Adriana BomBom "quase como se fosse paquita", enfim, muito problemático em vários sentidos.