O texto de hoje foi produzido para o Literoutubro na Toranja. Como me atrasei para redigir alguns textos, copiei a ideia da Paula Maria e “roubei” um pouquinho nas regras, elaborando um só com as palavras temáticas desses dias.

Papéis, livros e revistas abertas espalhavam-se pelo chão. Uma xícara vazia, com marcas de café seco, repousava ao lado da almofada grande e redonda, onde ela se deitava, semi acordada, com um caderno no colo e a caneta ainda na mão. Sentiu a luz do dia penetrar pela janela e abriu os olhos lentamente, esforçando-se para desfazer a remela acumulada entre os cílios. Limpou a baba no canto da boca com o dedo indicador. Adormecer com medo e acordar no caos havia se tornado sua rotina. Um caos familiar, que a acompanhava por toda a vida, especialmente nesses momentos em que seu foco estava intensamente voltado para as vozes em sua cabeça e os pensamentos que explodiam, brilhantes, como fogos de artifício em um céu profundamente negro.
Passava as noites engolindo café e rabiscando compulsivamente inúmeras ideias. Mas, quando a ponta da caneta descolava do papel, ela relia, arrancava a folha, amassava-a em uma bolinha e brincava de acertar o lixo. Essa era sua única distração naqueles tempos difíceis.
Levantou-se para esticar as pernas, caminhou pela sala erguendo os braços e juntando as mãos sobre a cabeça. Inclinou-se para um lado, depois para o outro, em uma tentativa quase frustrada de movimentar o corpo e a mente naquela prisão. Sair de casa estava fora de cogitação. A fumaça escura e densa perdurava lá fora por semanas a fio, promovendo o ar que já era "indigesto", para dizer o mínimo, ao status de super tóxico.
Colocou a água para ferver e, enquanto moía os grãos para preparar mais uma garrafa de café, ligou a TV. O noticiário exibia um pronunciamento do prefeito e do governador, que, dividindo o mesmo palanque, anunciavam o "Plano Progresso em Harmonia", com pontos de ação que supostamente permitiriam o avanço agressivo das "técnicas de manejo do solo" praticadas pelo agronegócio, sem prejudicar a vida de quem precisava respirar na cidade. Sentiu vontade de chutar a televisão, de pegar uma lenha emprestada dos pastos em brasa e incendiar o púlpito, os microfones e aqueles homens que repetiam como fantoches palavras cuidadosamente redigidas (por outras pessoas, é claro). Eles permitiam que o fogo lambesse as matas e que a fumaça sufocasse vidas, enquanto preparavam o terreno para as próximas eleições. O prefeito queria ser governador, o governador queria ser presidente, e a eles não importava o custo, apenas o objetivo.
De pé na cozinha, despejou a água fervente sobre o pó recém moído, e quando o cheiro de café fresco invadiu suas narinas, ela se fez presente naquele momento, que durou apenas alguns segundos. Puxou o ar com força, fechou os olhos e recobrou uma memória distante de café coado sobre a mesa de uma cafeteria bonita que costumava frequentar com as amigas. Havia banquinhos de madeira de demolição e paredes muito verdes, adornadas com plantas que, hoje, não sobreviveriam sem climatização.
Tomou um gole da bebida e teve um estalo. Sentiu que, finalmente, estava desperta. A ideia das ideias havia surgido: a derradeira, a melhor que poderia ter. Calçou os sapatos, mas não colocou a máscara. Girou a chave na porta, atravessou o corredor, desceu as escadas, abriu o portão e seguiu caminhando, até se perder no meio da fumaça.
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E por hoje é só :)