Olá! A semana que antecedeu o Carnaval foi um tanto complicada por aqui e, perdida nas burocracias do mundo real, não consegui vir escrever. Lá pra sábado resolvi não insistir na ideia, afinal, era Carnaval. Talvez fosse só meu cérebro dando desculpas pra não cumprir o combinado, já sabemos que isso é comum por aqui, mas estou de boa com a minha decisão e, mais importante, estou de volta hehe :).
Encontro
Hoje encontrei uma pessoa que não via desde a adolescência. Ela disse que eu tava muito diferente. Na minha cabeça, diferente significa sempre a mesma coisa: engordei. E envelheci.
Fiquei constrangida, mas fingi costume.
Falei que ela tava bonita. Ela respondeu “você também”.
Não acreditei, é claro.
(Diário pessoal, 25/02/2025)
*
Corpo, estética e padrões de beleza são assuntos que nunca saem da minha cabeça. Já tive bons momentos de descanso em relação a isso, especialmente quando comecei a aprender sobre alimentação consciente e feminismo, e consegui manter até que por um bom tempo uma boa relação com meu corpo e com minha autoestima. Mas a vida, meu amor, não é nem de longe uma trajetória linear que só vai pra frente e mesmo que hoje eu saiba melhor que antes, há momentos em que ainda me julgo e me maltrato mentalmente, porque não sou magra. Pois bem.
Eu culpo a Malhação
Desde que assinei Globoplay, alguns anos atrás, venho cometendo a insanidade de rever as primeiras temporadas de Malhação, que passavam quando eu era adolescente e moldaram meu caráter em muitos aspectos. Revejo por nostalgia daquele tempo e também pra tentar entender as narrativas que eram enfiadas na minha cabeça com tanta insistência que deixaram resquícios pungentes até hoje.
Pra quem não sabe, Malhação é uma série que ficou muitos anos na programação da Globo, todos os dias às 17:30. Nos primeiros anos se passava em uma academia, com historinhas jovens e meio bobas, intercaladas com muitas cenas de corpos “malhados” majoritariamente femininos, em closes sugestivos.
Acredito que devo ter acompanhado a novelinha entre 1995 e 2005 mais ou menos e, nesse momento, estou nos capítulos de 2001. Costumo deixar passando no computador enquanto jogo um jogo ou faço planilhas (ou escrevo newsletters…), uma forma de assistir bem parecida com antigamente, quando deitava no sofá pra ver Malhação ao mesmo tempo que lia algum livro ou revista.
Conforme os capítulos corriam, comecei a perceber que a minha memória estava muito mais viva pra certas historinhas, muito parecidas entre si, que apareciam em quase todas as temporadas: a menina gorda que é rejeitada por todos e precisa passar por uma transformação (de emagrecimento) para sentir confiança em si mesma e, só então, ser amada por alguém. Só que tinha um detalhe que deixa a repetição desse enredo ainda mais cruel: nenhuma delas sequer era gorda de fato. E assim a gente aprendia que não ser muito magra é ser gorda e que ser gorda é inadmissível.
Em 1996, Fátima (Tatyane Goulart) precisava emagrecer pro seu aniversário de 15 anos. Entra na academia, se matricula em todas as aulas e sofre bullying o tempo todo, ao som de uma trilha sonora às vezes circense, às vezes sorumbática. Incumbida da missão de policiar Fátima para o emagrecimento, Dóris repetia o tempo todo que iria transformar a menina em um lápis.

A versão de 1997 teve Laura, interpretada pela sempre magra Juliana Knust, que vestia um moletom por cima do outro (uma versão grotesca de “fat suit”) e chorava porque conheceu um rapaz na internet que fugiu ao vê-la pessoalmente. Após o ocorrido, achou que a melhor coisa a fazer era se matricular na academia e esculpir um “revenge body”. Ironicamente, ela só consegue “emagrecer” depois de ficar um tempo sem ir na academia, voltando de shortinho e camiseta, para a surpresa todos (risos).
Já Fernanda Souza foi Helô em 2001, que ao ser trocada por uma garota alta e magra, fica obcecada pela necessidade de emagrecer e desenvolve bulimia. Surpreendentemente a questão do corpo ficou secundária ao falarem do transtorno e, por um tempo, Helô passou ilesa pelo julgamento das pessoas. Mas um tempo depois ela decide que quer ser cantora e, depois da personagem se ausentar por um período pra fazer uma cirurgia plástica no nariz (a pedido do seu empresário), a atriz volta visivelmente mais magra, momento em que a carreira começa a decolar.
Essas histórias me marcaram demais e não foram as únicas. Diálogos sobre dieta e emagrecimento eram presentes em quase todos os capítulos, fixando com muita eficiência na cabeça das meninas de casa que ser bonita e saudável é ser magra e que estar dentro do padrão é condição indispensável para ser digna de amor e respeito, pertencer.
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Hoje, em 2025, quando vou à academia ainda penso em Fátima, Laura e Helô. Pensamentos que não tenho coragem de revelar aqui, às vezes tão perversos quanto as piadas da TV de 1996. Penso também em como é violenta essa imposição que nos enfiam goela abaixo durante toda a vida, como são profundas as cicatrizes deixadas por essas punhaladas sem sangue que, de tanto tomar, vamos parando de perceber a dor.
Eu não sou mais a criança de 11 anos que conseguiu se ver na Fátima ao mesmo tempo que era chamada de Olívia Palito pelos amiguinhos. Sou uma mulher adulta, que não se identifica mais com nenhuma dessas histórias porque sabe que elas foram intencionalmente forjadas pra nos fazer sofrer. Porém, também sei que esses estímulos não cessaram, pelo contrário.
Hoje me percebo como uma mulher adulta cometendo dois pecados capitais do capital: engordar e envelhecer. Mas eu sou uma mulher adulta, eu sei melhor que ontem. Então faço terapia e tenho nutricionista pra lidar com a compulsão, compreendo bem o momento de vulnerabilidade que estou vivendo e sei que vai passar. Me forço a ir pra academia mesmo que isso desperte meus pesadelos adolescentes e me convenço todos os dias que pertenço àquele lugar como qualquer outra pessoa, que não devo nada a ninguém ali.
Não tem um dia que seja fácil e incômodos como o relatado no começo desta carta são constantes. Mas hoje, porque sou uma mulher adulta feminista e sei melhor que ontem, em vez de lutar contra quem eu sou e o corpo que eu tenho, eu luto contra esses pensamentos e contra aquilo que me faz sentir assim.
Querida Gisela,
*esta é uma carta para a personagem da novela Beleza Fatal e pode conter alguns spoilers
Me identifiquei com você logo nas primeiras cenas, ao te ver usar um biquíni de cintura alta e apertar a pele da barriga com descontentamento. Você no espelho enfiando agulhas compulsivamente no rosto, encarando sua monstruosidade com o desespero de quem já não sabe mais o que fazer pra ser “melhor”. Te entendo tanto, minha querida.
Entendo tanto você ter ficado presa a um relacionamento de alguém que manipulou seus sentimentos fazendo uso do poder que a opinião masculina exerce sobre nossos corpos e mentes. Entendo tanto sua ânsia por ser vista, por receber um elogio, por ser reconhecida e amada. Entendo mais ainda você querer acreditar nas mentiras que te disseram.
Por isso, fiquei muito feliz quando você aos pouquinhos foi cortando as correntes que te prendiam. A cada questionamento, cada pequena coisa, cada “eu te amo” que disse pra si no espelho, você foi se reconstruindo, a duras penas, mesmo com um homem âncora sendo pedra no seu caminho o tempo todo, você seguiu. Uma linda jornada da heroína, mas precisavam mesmo enfiar outro homem na sua história?
Não me leve a mal, é fácil compreender o bem que pode fazer dançar um tango com um argentino bonitão que diz palavras bonitas, mas você percebe o tamanho do clichê?
Fiquei pensando, sabe… pela minha experiência, quando uma mulher se encontra em uma situação como a sua, de relacionamento abusivo e vulnerabilidade emocional, não costumam ser os homens os primeiros a vir socorrer. Te digo sem sombra de dúvidas que a linha de frente do cuidado, acolhimento e apoio de mulheres que sobrevivem ao que você viveu são outras mulheres.
Então, Gisela, se a dor é sua, a caminhada também é. Seja protagonista da sua história e viva sim todos os romances que quiser viver, mas não se esqueça do importante papel desempenhado pela sua sobrinha, a professora de dança, a psicóloga. Porque no fim das contas, somos nós por nós, mas é difícil isso aparecer nas novelas.
É isso. Até a próxima ;-)
é muita loucura a gente perceber que nos anos 2000 quem era gorda na verdade era uma pessoa magra não esquelética.
e é muito chocante ver que essa estética tem voltado cada vez mais.
adorei o texto.
um beijo.
adorei seu texto, mais uma vez.
que desagradável esse tipo de gente, pior quando juntam com outras sem noção.
eu pensei que isso fala mais sobre as pessoas que dizem do que sobre a gente sabe?