Dentre tantas memórias de infância boas e ruins, não consigo dizer qual foi a mais marcante. Sonhos e traumas foram construídos naqueles primeiros anos de vida, muita coisa que carrego comigo até aqui.
Eu tinha cinco anos e estudava na Escola Municipal Infantil José Homem de Carvalho. Usava uniforme listrado de azul claro e branco, com meu nome bordado em vermelho na frente da camisa, e ia a pé para a escola, que era perto da minha casa.
Estudava de manhã e não me importava de acordar cedo. Gostava muito da escola, das aulas, das pessoas… tinha uma professora incrível, divertida e que me compreendia. Muito diferente da rígida tia Amara da escola anterior.
Meu momento preferido era, claro, o recreio. Sair pro pátio, comer mingau de aveia e brincar de polícia-ladrão com o menino que eu gostava. Pois é, aos cinco anos vivi meu primeiro amor. Não foi romântico como o de Anna Chlumsky e Macaulay Culkin, mas é uma memória importante.
Nós meninas desempenhávamos um papel diferenciado na brincadeira do recreio. Não éramos polícia, nem ladrão, mas uma terceira figura inventada, pra nos incluir na brincadeira: as reféns. O ladrão, agora sequestrador, nos capturava e levava pra um canto de três paredes, o mais próximo de uma cela que podíamos encontrar no pátio aberto. Não tinha porta, mas não fugíamos, ficávamos pacientemente paradas, esperando a polícia nos salvar. Tinha só uma coisa que podíamos fazer: gritar.
Meu “namoradinho” era às vezes polícia, às vezes ladrão. Os meninos trocavam de papel constantemente, podiam ser o que quisessem. Eu gostava quando ele pegava na minha mão e me conduzia até a cela das reféns. Gostava também quando estava lá presa e ele vinha me resgatar. Quando fazia o sequestrador, eu fingia rebeldia e gritava: seu saco de batatas! Só pra ver ele responder ao insulto pulando e gesticulando descontroladamente, enquanto cantava “sou um saco de batata frita!”.
Em 1990 a vida era simples: Acordar, caminhar até a escola, aprender brincando, não precisar ir à aula e poder dormir até mais tarde quando tava chovendo muito. Mas foi nesse ano que a professora, aquela que me entendia tanto, percebeu que eu aprendia certas coisas mais rápido que as outras crianças, terminava as tarefas mais cedo e ficava entediada na espera. Então, a querida professora Helena chamou minha mãe pra conversar e, a partir dali, o curso da minha vida mudou.
Nos anos 90 a TV falava muito sobre “crianças prodígio” e ter altas habilidades era visto como uma grande vantagem, algo exclusivamente bom, que os pais desejavam pros filhos. E lá fui eu aprender a escrever as primeiras palavras no meio desse contexto… Pois bem. Pude encerrar o segundo ano pré-escolar normalmente, mas no seguinte eu já não voltaria mais pra aquela escola.
Depois da conversa com a professora, minha mãe me levou a várias consultas de avaliação com uma profissional que não me lembro se era pedagoga ou psicóloga. Lembro do consultório, dos brinquedos que eu gostava, blocos de montar e uns bichinhos de madeira com movimento nas articulações. Apenas isso ficou na memória, sobre o que falávamos naquele espaço, esqueci.
As entrevistas não resultaram em um diagnóstico, mas geraram consequências. A profissional aconselhou que eu fosse adiantada, do segundo ano pré-escolar, pra segunda série do ensino fundamental. Um grande salto de dois anos na grade, quando toda a minha existência tinha acabado de completar seis. Mas minha mãe não concordou, achou que seria uma mudança muito brusca (sinceramente, ainda bem). Então, no começo de 1991, decidiram fazer mais um teste e fui colocada no terceiro período de uma escola particular.
Após um mês nesse novo lugar, que era longe de casa e onde eu não conhecia ninguém, fui informada de que seria movida novamente. Desta vez pra um prédio do outro lado da rua, na sala da primeira série do ensino fundamental da mesma escola. Mais um choque, mais uma dor. Outro lugar estranho, com pessoas estranhas, a cargo da apavorante Tia Matilde. Eu cheguei atrasada nas matérias e não tinha prática na escrita de letra cursiva, ela escrevia rápido no quadro e não gostava de letra “cocô de mosquito”.
Sentia medo o tempo todo, de não conseguir copiar tudo, de errar as respostas, dela notar que eu existia e ficar brava comigo. Eram horas difíceis, mas eu tirava boas notas e gostava de ler as cartilhas sozinha em casa, enquanto brincava de aulinha. Fui campeã de tabuada num bimestre daquele ano, mas só lembro de sentir muita vergonha por ter que ficar de pé e ser o centro da atenção da sala toda durante alguns minutos.
De lá até aqui foi um longo caminho. Muitos quilômetros rodados até aprender a entender e aceitar a minha mediocridade. O ano feliz de 1990 trouxe expectativas que atravessaram as barreiras do século e dos estágios da vida, moldou sonhos e decisões por todos os anos seguintes. Tudo porque aos cinco anos eu aprendi a escrever rápido, talvez porque fosse mesmo muito esperta ou talvez porque sentisse urgência em me expressar nesse formato silencioso e retumbante que é a escrita, de símbolos que formam palavras que escorrem pelas mãos, uma ânsia de deixar marcas no mundo, pra tornar inesquecíveis as minhas mais preciosas memórias.
O texto de hoje faz parte do newsletteraço, uma ação coletiva para incentivar a escrita!
O tema da vez é: sonhos e memórias de infância.
Segue a lista de todos os participantes para você acompanhar!
Victória escreve a resenhas que ninguém pediu
Lethycia Dias escreve a Uma mulher que escreve
Leon Nunes escreve a O Substack de Leon
Júnior Bueno escreve a cinco ou seis coisinhas
Danilo Heitor escreve a Antes do fim
Fernando Alves escreve a Futebol no Fim do Mundo
Paula Maria escreve a te escrevo cartas
Cadu Carvalho escreve a Tipo Aquilo
Denise Gals escreve a Aprendiz de Escritora
Karine Canal escreve a Kverso
Patricia escreve a Uma com a Terra
Mia Sodré escreve a Querido Clássico
E por hoje é só, pessoal! Até mais :)