Aviso: Este post é uma colaboração com a Rafaela Venturim, minha amiga, autora do
. Eu parto da perspectiva do que vivi aqui no Brasil, enquanto ela conta os dias que viveu em Portugal. Um texto complementa o outro, então passe lá e leia o relato dela também! :)17 de março de 2021. Um ano de pandemia no Brasil, um ano de confinamento, um ano sendo torturada psicologicamente pelo presidente do meu país.
12 meses vivendo de pagar boleto atrás de boleto, sem saber se vou conseguir continuar pagando boletos e se um dia haverá a mínima possibilidade de sonhar de novo. 12 meses sem compromissos presenciais no calendário, sem sentar num barzinho com minhas amigas, sem abraçar minha família.
52 semanas com medo de morrer e das pessoas que eu amo serem as próximas. 52 semanas puxando fundo o ar, sem conseguir senti-lo chegar aos pulmões. 52 semanas de peito apertado, angústia, ansiedade, depressão, solidão, queda de cabelo, compulsão, dermatites, problemas gástricos, dores de cabeça, falta de vitaminas, exaustão...
365 dias vendo minha sanidade e alegria de viver indo embora, tentando resgatar do fundo as últimas gotas que ainda restam. 365 dias contando corpos e famílias destruídas, vivendo a dualidade de sofrer com tanto horror e agradecer por, dessa vez, não ter sido a minha. 365 dias me despedaçando, pegando a vassoura e juntando os caquinhos. 365 dias sem ver luz no fim do túnel.
365 dias sobrevivendo, com o peso de saber que 282 mil pessoas já não podem dizer o mesmo.
(17/03/2021)
Eu lembro exatamente o que senti quando ouvi sobre a primeira morte da pandemia no Brasil. Era 17 de março, uma terça-feira, e eu estava indo trabalhar com a minha mãe quando ouvi no rádio que, no dia anterior, um homem de 62 anos havia morrido de Covid em São Paulo. Lembro do frio subindo a espinha e o nó travado na garganta, do coração começando a palpitar, uma sensação de pavor que tomou conta do meu corpo e durou o dia inteiro.
Mais tarde viemos a descobrir que a primeira vítima fatal na verdade era uma mulher de 57 anos, que havia falecido no dia 12 de março. Das primeiras dentre as milhares de mentiras disparadas contra nós todos os dias por poderosos inescrupulosos, essa notícia determinou o tom do que seria enfrentar uma pandemia genocida, vivendo no Brasil.
Antes disso acontecer eu já estava acompanhando relatos preocupantes sobre o resto do mundo, especialmente a Itália, e o medo já era latente, mas nada como o que eu senti naquele dia, ouvindo sobre aquela morte. Porque a partir dali não tinha mais escapatória. Havíamos começado a morrer de uma doença extremamente perigosa e a pessoa responsável por proteger nossas vidas era Jair Bolsonaro.
Eu, que sou pessimista nata e chorei muito quando ele foi eleito (no dia do meu aniversário de 34 anos), nem nos pesadelos mais assustadores imaginava que passaríamos pelo que a gente passou. Foram três anos até o fim da emergência global e mais de 700 mil mortes impossíveis de apagar da memória.
(Aqui faço um parênteses pra dizer que entendo muito quem queira apagar, juro. Eu demorei pra conseguir escrever esse texto porque também não quero lembrar. E aqui não estou falando daqueles que querem que a pandemia e seus crimes sejam esquecidos, que fique registrado. Estou falando de quem deseja esquecer o trauma, porque reviver o que a gente passou dói pra caramba, é excruciante, desolador).
Durante toda a pandemia, eu felizmente tive a possibilidade de continuar meu trabalho de forma remota e me isolar até que fosse possível tomar vacina. Não saí de casa pra praticamente nada por quase dois anos e não peguei covid até estar vacinada. Meus pais tiveram, uma semana antes da vacina chegar pra eles, e minha mãe passou vinte e um dias no hospital em um estado bastante preocupante. Mas, no meio de tanta tragédia, só consigo pensar que saímos bem, ainda que isso seja questionável. Minha família continuou inteira, mantivemos nosso trabalho e nossa renda, saímos vivos do outro lado. Com menos saúde, com certeza, mas creio que não nos diferenciamos de 99% dos brasileiros, que não puderam fazer coisas como comprar uma ilha particular pra se isolar nos momentos mais difíceis.
Nesse período eu comecei a ter ansiedade, depois ansiedade de doença e depressão ansiosa. Pela primeira vez na vida, passei a depender de ansiolíticos e antidepressivos pra levantar da cama de manhã. Nada ficou igual e muita coisa piorou.
Além de ferrar com a cabeça, a pandemia mudou fundamentalmente a nossa forma de existir no mundo. Lembra quando, no começo, tinha gente (eu) que até acreditava que sairíamos melhores dessa crise? Mais solidários, humanos, sensibilizados… Não parece que aconteceu tudo ao contrário?
Todos adoecemos. De formas e razões inúmeras e variadas, adoecemos individual e socialmente. Até podemos tentar ignorar, mas a ferida se encontra aberta e purulenta. Muitas das moléstias que enfrentamos hoje, cinco anos depois, nasceram e cresceram nessa quadra tão miserável da nossa história. Como disse, eu entendo demais o desejo de boa parte das pessoas em esquecer esse assunto, mas, além de ser impossível, é uma péssima ideia.
E aqui me perdoe por usar o clichê, mas querer apagar da memória que a pandemia aconteceu é como querer apagar a ditadura. Porque esquecer as consequências de um trauma coletivo tão profundo é esquecer também suas causas e agravantes. E, na próxima crise, estaremos fadados a repetir os mesmos erros. Não podemos deixar isso acontecer.
Além de lembrar pra responsabilizar e criar estratégias melhores de enfrentamento, é importante estarmos sempre conscientes do que sobrevivemos. Não foi bolinho. Perdemos muito. Mas houve sim solidariedade, afeto, compartilhamento. Ainda que vindos da minoria, sentimentos positivos foram transformados em ação e muita gente se ajudou.
Ignorar o feio significa ignorar também a beleza que nasce até nas condições mais inóspitas.
Por aqui, foi na pandemia que tirei forças não sei de onde pra ajudar a estruturar o Nós Seguras, com mais de 70 advogadas voluntárias maravilhosas, que toparam dispor do seu tempo e conhecimento pra ajudar mulheres em situação de vulnerabilidade aumentada durante a pandemia; projeto que transcendeu as mazelas daquele período e segue vivo até hoje. Foi também em 2021 que criei essa newsletter e hoje aqui estamos.
Entre o caos e o desespero, nasceu flor. E a gente precisa se lembrar disso, pra não parar de espalhar semente.


Por hoje é só. :)
Senti e me vi em cada uma das suas palavras!
Eu amei EM ABSOLUTO essa nossa parceria. Os dois textos partem de lugares tão distintos, e isso é tão bacana, e tão importante. Como é importante registrar como foi viver aqueles dias tenebrosos dentro dum governo Bolsonaro. Como é essencial não esquecermos.
"Por aqui, foi na pandemia que tirei forças não sei de onde pra estruturar o Nós Seguras com mais de 70 advogadas voluntárias maravilhosas que toparam dispor do seu tempo e conhecimento pra ajudar mulheres em situação de vulnerabilidade aumentada durante a pandemia, projeto transcendeu as mazelas daquele período e segue vivo até hoje. Foi também em 2021 que criei essa newsletter e hoje aqui estamos.
Entre o caos e o desespero, nasceu flor. E a gente precisa se lembrar disso, pra não parar de espalhar semente."
...A pandemia também rendeu esse texto, então, acho que temos uma amizade meio tóxica com ela. E, no fundo, acho que ela permanece muito próximas de quem somos hoje. *Isso* também não vamos esquecer.
Um beijo, amiga. Amei esse exercício! Muito!