Eu coleciono revistas femininas antigas. Gosto de recortá-las pra fazer colagens e de reler conteúdos direcionados às mulheres em outros tempos. Ontem, mexendo nesse acervo, encontrei uma revista Gloss, de maio de 2011, mesma época em que ocorreram os fatos narrados por Vanessa Bárbara, no último episódio da Rádio Novelo, em que a escritora relata momentos terríveis que viveu em um relacionamento abusivo, com um homem que dividia detalhes íntimos do casamento deles em um grupo de email que, dentre outros assuntos, era também dedicado a objetificar mulheres e cultivar a prática da misoginia.
Dentre as matérias de capa dessa revista lá estava: “Vale mesmo a pena invadir o email do namorado?”. Só mais uma dessas coincidências da vida que a gente não explica, mas usa no aprendizado.
Ouvi o episódio na sexta, dia 17 e, desde então, tenho pensado em muito pouca coisa além disso. A história da Vanessa bateu em um lugar muito profundo, futicou as cicatrizes dos meus próprios traumas e fez coisas saírem dali. As cenas relatadas, as respostas evasivas, as ameaças, o jogo da culpa e o acobertamento dos “parças”, é tudo dolorosamente familiar, pra mim e pra boa parte das mulheres que conheço.
Não é nada fácil organizar os pensamentos em torno dessa temática, especialmente porque fazer isso implica em assumir minhas próprias contradições e confrontar a pessoa que eu era em 2011 e que demorei muito tempo pra deixar de ser. Por anos eu participei de grupos majoritariamente masculinos em que o “humor” misógino, gordofóbico, homofóbico, estava sempre na pauta do dia. Ao ver comentários como os trocados pelos algozes da Vanessa, eu não questionava. Para sentir que era “um dos garotos”, eu ria das piadas, eu atacava, inferiorizava e rivalizava com outras mulheres, ainda que morresse de medo de ser o próximo alvo. Na tentativa de não ser apedrejada, jogava pedra, na ânsia de pertencer, eu endossava o pacto. Mas, pra surpresa de ninguém, nas vezes em que meu nome caiu na roda, não fui poupada, nem protegida.
Eu não sabia nada sobre feminismo nessa época e demorou uns bons anos até eu entender que ser “da galera” não me eximia do defeito de fábrica de ser mulher e que esse era um problema imperdoável, impossível de contornar.
Hoje me questiono se, como uma mulher cisheterossexual que se relaciona com homens, saber do caráter estrutural dessas práticas, e que o risco de viver essas violências sempre existe, me tornou mais intransigente ou mais conivente quando coisas assim acontecem na minha vida privada e no meu entorno. Porque é fácil ser implacável e esperar comportamentos exemplares em situações que são vistas de fora e dependem da ação de terceiros. Mas e quando é com a gente?
Ao longo da vida, já me encontrei mais de uma vez na posição de quem sabe que está sendo enganada, invade a privacidade do outro em busca de respostas, mas quer muito perdoar e acaba acreditando. Já fui humilahada na internet e relevei, já tive informações íntimas compartilhadas sem meu consentimento e perdoei, já ouvi mil vezes que estava louca de quem mentia na minha cara e acreditei.
Eu nunca tive a boa-fé da Vanessa, porém. Como um bicho que foi atacado incontáveis vezes, vivo olhando sobre os ombros e só sei confiar desconfiando desde muito, muito cedo. Freud explica, provavelmente. Mas o risco sempre existe. Então a gente se deixa levar pela ideia de que dessa vez vai ser diferente, de que é possível que seja diferente.
O episódio em tese é muito menos sobre a traição e muito mais sobre a rede de cooperação masculina, de homens que se unem pra coletivamente odiar mulheres, enquanto protegem e acobertam uns aos outros. O aspecto estrutural de uma história tão antiga aparece a olhos vistos quando dizemos (porque sabemos) que para os homens que adotaram essas práticas ou foram coniventes, nada mudou, nem vai mudar. Mas para a mulher que ousa levantar o véu da cumplicidade masculina, sempre haverá consequências, sempre haverá julgamento e, em grande parte das vezes, condenação.
Quase 15 anos depois podemos pensar que tudo mudou. As pessoas mudaram, estamos mais “desconstruídos” e tal, mas atividades como as que a Vanessa denunciou ainda formam a espinha dorsal da nossa sociedade. Formas embrionárias dos masculinistas que hoje dominam as redes sociais, tais grupos não só não deixaram de existir como evoluíram e alçaram grandes voos na conquista de poder. Hoje, o mercado editorial, assim como o mercado em geral (e o resto do mundo), é liderado por sujeitos que desejam e incentivam que a prática da misoginia não se restrinja a grupos privados. Hoje, difamar, oprimir e subjugar mulheres e pessoas que saiam do padrão cisheteronormativo é demonstrar “energia masculina”, é exercer liberdade de expressão.
Vanessa teve portas da sua vida pessoal e profissional fechadas porque sofreu violência e reagiu. Porque não aceitou e não silenciou, ela precisou se afastar, precisou parar de frequentar certos eventos e lugares, precisou buscar novos rumos pra carreira. A dor dessa mulher parte do indivíduo, mas não é individual. É sintoma de uma doença social que permite que homens prejudiquem mulheres de diversas formas e sigam a vida como se nada.
O trauma é uma cicatriz. No corpo, na alma e na caminhada.
Vanessa fez muito APESAR do que fizeram com ela, APESAR das marcas que deixaram nela a ferro e brasa. Imagina o que teria feito não fossem essas pedras no caminho?
Quantas vezes somos derrubadas pelo ódio masculino e precisamos nos reerguer ao longo da vida? Quantas mulheres acabam desistindo , estafadas de tanto tentar buscar rotas alternativas?
Nem todas conseguirão seguir em frente. Uma boa parte vai desistir, uma boa parte será derrotada por esse comportamento, que tem por objetivo final a aniquilação da nossa autonomia, do nosso direito de sermos pessoas que estão no mundo pra mais que servir e procriar.
Por isso, na minha visão, Vanessa foi braba demais por contar essa história e iniciar essa conversa, tão importante, tão fundamental. Mas seu maior ato de coragem foi seguir escrevendo, trabalhando e construindo a vida rica e frutífera que ela viveu, depois de quebrar as correntes da armadilha tão cruel desse relacionamento. Foi ter morrido em um ano, mas não se deixar morrer no outro e estar aqui, sacudindo com a força da sua existência essas estruturas que nos fazem tão mal. Vanessa, assim como tantas outras brasileiras, sobreviveu à violência dos homens e pode contar. Pode e deve. É sua história pra ser dita e isso ninguém vai lhe tirar.
Por hoje foi… :’[
Até.
O que me deixou mais chateada nessa história foi, (além, óbvio, da violência sofrida por Vanessa) como você bem pontuou, o pacto de acobertamento entre os homens. 15 homens e nenhum ousou ir contra o grupo. É horrível perceber como estamos sozinhas num relacionamento hetero e como, por muitas vezes, numa situação de violência, não encontramos nenhum apoio de nossa comunidade próxima.
Obrigada por esse texto.
Sigamos.
Um beijo.
👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼