Eu não falo muito sobre meu pai. Ele é uma pessoa viva e eu respeito o direito à privacidade e à própria história que ele tem. Ainda que a parte da nossa trajetória que se cruza seja permeada de dor, há tantas outras coisas, complexas demais pra qualquer texto abarcar. É o que acontece quando você convive há quase 40 anos com uma pessoa, você a conhece e ela conhece você, querendo ou não, sendo “presente” ou não.
Minha trajetória com ele sempre me fez questionar o que seria essa presença afinal, se ela é sempre algo a desejar e como a vida seria se ela não existisse, pro bem e pro mal. Talvez por isso desde muito cedo questionei a simplicidade binarizada com que insistem que a gente olhe pras coisas: “É bom ou é ruim; é presente ou é ausente; é carinhoso ou é violento”. Tem muito mais lados nessa figura do que a gente se dispõe a olhar.
Talvez por isso eu seja abolicionista penal e tenha aprendido que um crime nunca é só um crime e dificilmente terá responsabilidade individual. Um crime é uma ferida, naquela comunidade, naquela família, naquela relação. Mas há todo tipo de remédio pra curar os inúmeros tipos de ferida que existem e muita coisa que é placebo sendo vendida como cura definitiva.
Na minha relação com meu pai teve afeto e violência, teve erros e aprendizados, atenção e indiferença, teve um corpo bastante presente com a cabeça em outro planeta, característica que herdei dele, numa peça que a genética acabou me pregando.
Não tem nada de simples em falar sobre isso, é agridoce, numa proporção nada equilibrada. É catártico, dolorido e esquisito, porque ele é uma pessoa viva e eu respeito a história dele, porque tem a parte que me cabe, mas é impossível separar. Como as moléculas de DNA, o que eu tenho dele, não sai de mim, não “desmistura”. Mas somos pessoas diferentes e eu só saberia contar uma parte do todo, um fragmento, uma versão.
Obrigada.