#17 Uma carta para a minha amiga secreta (edição 2023)
Alguns pensamentos sobre nudez e escrita
Essa carta faz parte de uma brincadeira muito gostosa de amigo secreto criada pelo grupo Newsletter BR, que tive o prazer de integrar depois do evento O Texto & o Tempo, em 2022. É uma troca de cartas de fim de ano em que a gente sorteia uma pessoa e seleciona uma publicação dela para responder na própria newsletter, em forma de carta. Minha amiga secreta eu revelo já já, vem comigo.
Olá, minha querida, tudo bem?
Essa carta traz pensamentos sobre uma edição da sua news que ressoou na minha cabeça como resposta a questionamentos que faço a mim mesma há bastante tempo e que se intensificaram ultimamente com a dificuldade que tenho sentido para escrever.
Antes de mais nada, uma "lembrancinha" musical :)
Enquanto pensava sobre o seu post, criei essa playlist. São retalhos de uma colcha que talvez não pareçam fazer sentido reunidos, mas são músicas que conversam comigo quando o assunto é se despir de todos os medos e revelar o que tem dentro.
Lethycia, somos colegas de grupo, mas confesso que ainda não tinha lido você. Fiquei muito realizada quando percebi que esse amigo secreto foi mais uma oportunidade de conhecer uma autora que fala de assuntos tão interessantes de um jeito tão bonito e comovente. Bem no comecinho da carta “Escrever é como se despir” você disse o seguinte:
Escrever é como se despir. Não se despir do jeito que a gente faz na hora dos finalmentes com aquela pessoa, mas do jeito que a gente tira a roupa num consultório médico. Meio devagar, meio constrangida, porque você nem queria estar fazendo isso, mas você sabe que é importante e que precisa disso pra atingir um objetivo. Às vezes o que a gente quer é realizar um exame e saber como ta a saúde, às vezes a gente quer colocar pra fora uma história que não sai da nossa cabeça.
Essa observação representa tão profundamente o processo de escrita que me fez ficar dias pensando... Escrever é um ato de nudez necessário. Não é apenas vontade, muitas vezes sequer é desejado, mas ainda assim, necessário, vital. Eu costumo dizer que escrevo porque não escrever dói, me incha a pele, entope os poros. Se não escrevo, eu me arrebento e também se arrebentam as vestes, tomadas por um fogo, um ardor, uma urgência de expulsar do corpo o que a alma sente.
Viu só? Fico divagando horrores só de relembrar a sensação de te ler. Não seria exatamente pra isso que a escrita existe? Pra, através da realidade ou da ficção, revelar o que tem dentro da escritora e descobrir como isso conversa com o que tem dentro de quem lê? Sei lá, acaba que nos despir é também uma forma de tirar as vestes da outra pessoa.
Quando a gente começa a escrever, é como se a gente estivesse usando todas as nossas roupas umas por cima das outras, sem nenhum critério de combinação. Você só tacou uns três casacos um por cima do outro numa dia muito frio, uns dois pares de meia nos pés, uma touca na cabeça e ainda colocou o capuz do moletom por cima. Você tem medo de não ser bom. Você tem medo de escrever um personagem com uma vida muito diferente da sua. Você tem medo de fazer o vilão da história ser uma pessoa elitista e racista porque é imoral ser elitista e racista. Você tem medo de fazer seu herói soltar um “porra!” porque é feio falar palavrão. Você tem medo de fazer o seu personagem falar uma gíria ou uma expressão regional porque aprendeu que tem que escrever em “Português correto”. Você tem medo de escrever uma cena de sexo porque a sua família vai ler e te achar uma pervertida safada. Você tem medo de escrever, na primeira pessoa, o que o seu personagem pensa sobre um assunto polêmico da atualidade e todos acharem que é assim que você pensa.
A gente veste uma roupa por cima da outra porque temos medo de mostrar a nossa forma, medo do que tem por baixo desse bolo sem definição não agradar ou não parecer tão belo quanto o que admiramos. A gente tem medo de falar sobre o que é real, sem edição e sem filtro, de pessoas reais, com formas reais e contradições, “inconsistências” difíceis de revelar pra um mundo que prefere imagens planas, uniformes, unilaterais.
Tirei as botas e as meias e entendi que era gostoso pisar no chão e sentir aquele tipo de história que eu vinha escrevendo e que era muito diferente das de antes. Fiquei de calça e camiseta, mas de vez em quando é necessário tirar também a calça e a camiseta e o que está por baixo para continuar escrevendo. Então eu me lembro de todas as peças de roupa que larguei pelo caminho. E tiro o que me resta de medo.
Mas esconder o que tem por baixo (por dentro) é perder a oportunidade de sentir o mundo de uma maneira que só é possível com o tato da pele nua. Se os pés deixam de tocar o chão perdemos a raiz, se protegemos o corpo de todo vento e toda chuva deixamos de sentir a força da natureza e fica mais fácil esquecer que somos parte dela também, com vestes ou sem. Que assim como qualquer criatura que habita esse planeta somos únicas e múltiplas, nos encontramos nas nossas diferenças e aparente incoerência.
Há vários assuntos sobre os quais ainda não consigo escrever, camisas com botões minúsculos em casas apertadas, calças cujo zíper tá emperrado há sei lá quanto tempo… mas depois do seu texto bateu um calorzinho por aqui também e acho que consegui desapegar de pelo menos um par de luvas e tô a isso aqui de tirar as meias e botar os pés na terra de novo. Te agradeço muito por isso e espero que goste da minha resposta, pecinhas de roupa metafóricas das quais me descobri, pra conversar com você.
Grande beijo!
Liv <3
Oi, Lívia!
Eu ainda não tinha lido nada seu, então fiquei feliz por ter sido sorteada por você. E gostei muito dessa resposta e de saber que fiz você sentir esse impulso de se mostrar mais com a própria escrita! E amei as suas próprias reflexões sobre as "peças de roupa" e por que nos escondemos embaixo delas. Muito obrigada pela carta! Um feliz 2024 pra você! <3